Regresso à Boa Vista

 É curiosa a forma como se vive um destino, como se olha para ele. A perspectiva é tudo, o ângulo de onde se olha. É certo que a experiência num destino é irrepetível. Podemos visitá-lo três vezes e a cada vez descobrimos coisas novas, cheiramos outros aromas, ouvimos sons até então mudos.

Com Cabo Verde não é diferente. Este ano fui três vezes à Ilha da Boavista, ou melhor, à Boa Vista, e descobri três ilhas diferentes.

A minha última visita aconteceu na passada semana, desta feita longe dos resorts do tudo incluído, numa casa particular. E aí descobre-se um outro Cabo Verde mais próximo com a realidade. E não, este meu desabafo sob a forma de texto não é para enaltecer as virtudes turísticas da Ilha. É para falar da vida, da vida deles e de como se cruzou com a minha.

Para colocar as coisas em perspectiva, a Boa Vista tem tantas cabras como a Terceira tem vacas. Aliás, cabras, burros e gafanhotos batem por larga maioria o número de habitantes da Ilha. E tirando a vila de Sal Rei, tudo o resto parece ser paisagem… lunar. Vamos por partes. Sal Rei é uma vila costeira, a capital da ilha, resguardada por um Ilhéu com o mesmo nome. A praça principal é onde tudo (não) acontece. Um jardim com uma fonte (sem água), uma esplanada de nome Silves mas com uma bica aceitável, wi fi gratuito mas com velocidade do terceiro mundo, um mercado municipal aceitável e um bar/café chamado Cocoa que mais parece a entrada no Comboio Fantasma da saudosa Feira Popular, dada a escuridão ali reinante.

Na Boa Vista tudo é caro, muito caro. A ilha não produz nada, se exceptuarmos o queijo de cabra e mesmo esse é preciso saber onde o comprar. E se falarmos de comida, não só é caro como a qualidade é discutível. O comércio na ilha está inevitavelmente nas mãos de chineses (para não variar) e de italianos com passados pouco recomendáveis. Os restaurantes são de qualidade sofrível, tirando duas ou três excepções. E aqui o primeiro lugar do pódio vai para o restaurante da Bia, bem atrás da praça principal. Típico, despretencioso, local, saboroso e barato. A cachupa que ali comi, regada com uma Sagres geladinha, fizeram-me ir ao céu.

Curiosamente, sendo a Boa Vista uma ilha pequena, todas as restantes povoações não estão à beira mar. Estranho, não? Rabil, Povoação Velha, João Galego ou Norte são nomes de povoações, que mais não passam de agrupamentos de pouco mais de uma dezena de casas. Depois há as estradas… ou, melhor dizendo, picadas. Ali quem não tem um 4×4 não é ninguém.

Outro pormenor… as casas nunca estão acabadas. Ou por outra, estão… mas não estão. Entenderam? Como dar por terminada uma casa implica o pagamento de um imposto ao município… ninguém as termina. Rara é a casa onde o andar térreo se apresenta pintado e em bom estado e o primeiro andar surge com os tijolos à vista.

Quanto ao crioulo… há apenas duas expressões que precisa saber: Tudo derêt? O mesmo é perguntar se está tudo bem. A outra é Ká Tem e é a mais utilizada na ilha. Ká Tem significa Não Há! Por exemplo, vai a um café e olha para o lado e observa o vizinho a comer uma tosta mista… e fica com vontade de comer uma torrada. Chama a empregada e pede uma torrada. Resposta? Ká Tem. Mas acabou o pão? Não, não! Temos tosta mista, mas ká tem torrada!! 🙂

A vida na ilha faz-se ao ritmo da morna, devagar, embalada. E mesmo os portugueses que por lá param, expatriados, parecem contagiados com este ritmo.

A Boa Vista é de facto abençoada com praias fantásticas, com especial destaque para a de Chaves e de Santa Mónica. Mas um olhar mais atento revela uma desilusão maior. O mar aqui é selvagem, a lembrar que o Atlântico não dá tréguas. As ondas rebentam bem em cima da areia, deixando espaço apenas aos destemidos para um mergulho e umas braçadas. O melhor local para nadar é a Praia do Estoril, abrigada pelo já referido ilhéu.

Lugares especiais há dois: Praia da Varandinha, talvez porque para lá chegar se tenha que penar por um caminho de cabras ou, às vezes, por caminho nenhum; e a Espingueira, uma aldeia abandonada, parcialmente recuperada por uma italiana que ali ergueu um turismo rural, a Spinguera, de grande qualidade. O local tem realmente magia. O pôr do sol enquanto se saboreia uma Strela, a cerveja local, entra directamente para a galeria dos momentos kodak! E depois, para apreciadores de bom café como é o meu caso, ali se pode saborear a melhor bica da ilha!

Mas onde fiquei com a real perspectiva da ilha foi quando decidi cozinhar e, para isso, fazer compras. Onde há pão, não há fruta, onde há fruta não há vinho, onde há vinho não há peixe, onde há peixe não há queijo, onde há queijo não há pão, onde há pão não há legumes, onde há legumes não há mais nada! Entendido? Ou seja, coxinhar um prato simples implica a visita a cinco locais distintos, no mínimo.

Mas relaxe. Está na Boa Vista. Não há pressa. Afinal, vai a correr para onde?

1 Comentário

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1 responses to “Regresso à Boa Vista

  1. Cátia

    At last!!! Ja tinha saudades de uma boa leitura ;)…ler o “Judeu Errante” é viajar através de ti! Tens que escrever mais vezes Ruben! Espero que tehas aproveitado bem as mini férias 😉 beijocas

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